
Gilberto Gil era um pontinho branco no meio do palco do ponto de onde estávamos assistindo ao seu show de despedida. Do alto dos 80 anos de idade, ele se apresentou diante da plateia de Brasília com a alma cheirando a talco, mais sábio, acolhedor e contestador do que nunca. Ver o ídolo da família tocando e cantando diante dos nossos olhos, cercado também de seus talentosos filhos e filha, nora, neto e músicos foi uma experiência que guardaremos para sempre na memória. Não importa aonde ele estiver, o refrão "Que Deus deu... Que Deus dá..." ecoará em nossos cantos e corações para sempre.
Tenho várias lembranças de infância, de adolescência e de vida adulta com as músicas de Gil. Numa delas, não me lembro bem os detalhes, meu pai me entrega a letra impressa de uma canção. O objetivo era mostrar o que era "música boa" — talvez estivesse cansado de ouvir os hits infantis do momento repetidas vezes e, claro, já ia me ajudando a montar um repertório cultural duradouro, não importa o que eu fizesse com ele depois, a base estaria ali.
Recebi naquela folha de papel meio amarelada os versos de A novidade. À época, conhecia apenas a versão dos Paralamas do Sucesso e acreditava que a composição era apenas deles. Mas havia ali, como em tantos outros trabalhos colaborativos da música brasileira, o tempero baiano de Gilberto Gil. Aquele rabo de sereia no meio da letra que escancarava injustiças me intrigou profundamente. E a música segue no meu baú das preferidas até hoje.
A eternidade das três horas de show no Mané Garrincha lotado ainda me tocou de várias formas. Gil eou ao longo da carreira pelo reggae, rock, samba, forró e MPB e conseguiu resumir tudo isso em uma apresentação emotiva. Foi impossível segurar as lágrimas no trio intimista Se eu quiser falar com Deus, Drão e Estrela, que virou canção de ninar para as crianças lá em casa.
A vastidão do repertório ainda eou pelas três capitais da República, numa conexão que não era óbvia, tampouco proposital na produção, mas que achei poética: Salvador, Rio de Janeiro e Brasília juntas n'Aquele abraço. Se o tempo é rei, Gilberto Gil soube aproveitá-lo em toda a sua majestade, e a recíproca é verdadeira. Sem ilusões, "tempo e espaço navegando todos os sentidos".
Só me resta agradecer pela gentileza de organizar uma despedida dos palcos generosa e cuidadosa com o público, valorizando as gerações de artistas que o sucederam. Certamente não foi o fim, mas um ciclo importante na música brasileira se encerra este ano. Ele nos deixa com a leveza e teimosia da poesia arrojada, e com o peso de encontrar direções e sons que sigam inspirando transformações. Obrigada, Gilberto Gil!
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