
IDERLAN DE SOUZA SANTANA e ROSA MARIA GONÇALVES, trabalharam com Niède Guidon
Iderlan Santana — bacharel em arqueologia e preservação patrimonial, mestrando em arqueologia (Univasf), guia do Parque Nacional Serra da Capivara e diretor-presidente do Museu Zabelê (Muzab)
Conhecer a doutora Niède Guidon transformou completamente a minha vida. Nascido no velho Povoado Zabelê, então localizado dentro da futura Unidade de Conservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, enfrentei inúmeras barreiras — físicas, emocionais e sociais — ao deixar minha terra, aquele território sagrado que marcou profundamente a minha trajetória e a de muitos outros moradores da região.
Foi quase acidental. no Pró-Arte Fumdham, conheci não apenas a arte, mas também mergulhei, com fascínio, nos mundos da arqueologia e da paleontologia, incentivado pelo trabalho com a doutora Niède Guidon, entre 2004 e 2012. Convivi com uma mulher de caráter firme e generosidade rara. Apoiado por ela, tive a oportunidade de estudar arqueologia na Universidade Federal do Vale do São Francisco e, ao mesmo tempo, atuar profissionalmente. Doutora Niède foi também minha professora de português — em segredo, como tudo que faz com humildade e ética. Jamais falei disso a alguém.
Recordo-me com carinho de quando seus olhos se encheram de orgulho ao me ver falando em francês com seus colegas pesquisadores. Essa sensibilidade, aliada ao seu compromisso com o desenvolvimento humano e cultural da caatinga, revelou a grandeza de seu trabalho: preservar, educar e transformar.
Seu legado é imensurável. A doutora Niède plantou sementes que hoje germinam, florescem e dão frutos em toda a região. Sua dedicação à preservação do patrimônio e à formação das pessoas segue viva em cada projeto que brota da terra vermelha do Sertão.
Mais recentemente, quando soube do nosso projeto — o Museu Zabelê/Muzab, criado para contar a história do velho Zabelê e salvaguardar a cultura material e imaterial da antiga comunidade —, doutora Niède, com a mesma generosidade de sempre, nos apoiou mais uma vez. Concedeu-nos uma entrevista especial para a nova exposição do museu, reforçando seu compromisso com a memória e a identidade do nosso povo.
O reconhecimento veio na conquista da premiação na 34ª Edição do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade (2021), concedido pelo IPHAN. Mas o maior prêmio é saber que, graças à doutora Niède, seguimos construindo caminhos para o futuro sem esquecer nossas raízes. Gratidão, por tanto.
Rosa Gonçalves — Aarte-educadora e museóloga. Trabalhou de 2008 a 2013 na coordenação do Pro-Arte Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham)
Depois de rodar alguns quilômetros de estrada, viramos à esquerda e entramos num caminho de terra. Seguimos. Depois de um bom trecho, viramos à direita e desci para abrir a porteira. Mais um
trecho e o 4x4 estaciona, prevendo qual seria minha reação, porque sabia o quanto a paisagem é impressionante. Enquanto ouvia, virei o rosto e vi um imenso paredão de rocha: a Pedra Furada. Neste momento, senti que era uma “experiência estética” genuína. Depois, ainda, próximo ao Sítio Arqueológico das Pedrinhas Pintadas, avistamos uma raposinha que nos acompanhou por boa parte do nosso percurso. Ela me contou que isso sempre acontece: os animais se aproximam sem medo. Assim aconteceu minha primeira visita ao Parque Nacional da Serra da Capivara acompanhando Niède (até então, eu a chamava pelo primeiro nome. Depois aprendi que todos a chamavam de doutora).
Muitas pessoas escrevem sobre a doutora Niède Guidon e, certamente, se referem a ela com grandes adjetivos, fazendo jus a relevância de sua obra, para a região e para a ciência brasileira.
Penso que seja importante lembrar que Niède Guidon é uma pessoa complexa. Fui privilegiada com os anos trabalhados na Fundação Museu do Homem Americano coordenando o Pró-Arte Fumdham, porque pude estar sob orientação direta da doutora Niède. Nas reuniões no escritório de sua casa, rodeada pela Bolinha, por gatos e pássaros da caatinga, percebi que a doutora não é nem boazinha, nem má. Em seus momentos, às vezes, expressa opiniões bem difíceis, desejando ser desnecessária, pois cada pessoa ali pode se desenvolver e transformar sua realidade sem a necessidade de intervenções externas. Depois, a doutora Niéde pensa em tempo futuro: trabalha com o ado, mas projeta para o futuro. Esconde seu lado pisciano, frágil e sonhador, e se reveste de pessoas duras, porque o trabalho nem sempre é feito com doçura.
Sou extremamente grata à doutora Niède por ter permitido a mim, “a artista louca”, desenhar projetos que nunca havia sonhado, por me convidar para trabalhar em São Raimundo Nonato e conhecer amigos de uma vida inteira. Seus verbos são no presente, doutora Niède. A senhora é e sempre será. Seu legado estará sempre presente, hoje e no futuro.