Cidade Nossa

Cidade Nossa: O espião que saiu de uma fria

Na crônica deste domingo (8/6), o jornalista e escritor Sergio Leo faz uma deliciosa reflexão sobre os dilemas da atualidade e da vez que esteve em Nova York, nos anos de 1990

REV-0806-CRONICA2 -  (crédito: Maurenilson Freire)
REV-0806-CRONICA2 - (crédito: Maurenilson Freire)

Especial para o Correio — Sergio Leo

Ocupada com discussões sobre adoção de bonecas hiper-realistas, os “bebês reborn”, e entretida com debates sobre a influencer que induziu iradores a perder dinheiro em jogos de azar, a internet, em maio, fez pouco barulho com a revelação de que o Brasil tornou-se um ninho de espiões russos. Nesse mundo que parece um filme distópico, com governantes totalitários e gênios do mal armados com alta tecnologia, esses espiões até demoraram a entrar em cena.

Com a volta do clima de guerra fria, disputas entre nações e vilões no comando de grandes potências, a Rússia, pelo jeito, viu no Brasil, por sua população multiétnica e sua desburocratização na emissão de documentos, um excelente local para forjar identidades falsas. E ou a exportar, daqui, seus agentes secretos, após equipá-los com a malemolência de istas de escola de samba.

Oliveira, o canalha da redação já estava preocupado com as dificuldades para renovar o visto de entrada nos Estados Unidos do xenófobo Donald Trump. ou a temer também que nos confundam com espiões do Kremlin, treinados por um governo cujos opositores têm o mau hábito de cair de janelas em grande altura.

Não é desconfiança sem fundamento. Lembro da reação de um motorista, na Nova York da década de 1990, ao me ver conversar animadamente em português, num táxi, com um casal de jornalistas e Ana Tavares, querida assessora de Fernando Henrique Cardoso, na época. “Vocês são russos?”, perguntou, ao notar a diversidade étnica do grupo e confundir nossas vogais e encontros consonantais de raiz indo-europeia com marteladas silábicas do eslavo oriental.

Sozinho, na mesma Nova York, os taxistas costumavam olhar para minha barba e me imaginar iraniano. Confusão que, francamente, não ajuda muito hoje em dia nos Estados Unidos em delírio paranoico com estrangeiros. Chegado a uma paranoia, eu mesmo ei a temer uma deportação por suspeita de espionagem, no caso de obter meu visto para os EUA, apesar de minhas postagens em redes sociais escandalizadas com as barbaridades de Donald Trump.

Ignorante sobre assuntos de futebol, já me imaginei interrogado na imigração sobre a escalação da Seleção Brasileira. Não lembro nem o nome do novo técnico. Uma pergunta dessas seria meu aporte para Guantánamo, concorda Oliveira. Quem me tranquilizou foi o amigo Celso de Barros, cientista político e doutor em sociologia em Oxford, onde, certamente, teve franca convivência com arapongas a serviço de Sua Majestade britânica:

— Take it easy, Sergio Leo, até o Trump sabe que futebol deve ser a primeira coisa que ensinam na escola de espionagem para formar brasileiros reborn — comentou o Celso. Para checar quem é mesmo brasileiro ou fake, o questionário deve correr por outras esferas mais profundas da alma nacional: “Na certa, vão lhe perguntar algo como... o que é um despachante?”

E viva a brasilidade. Há muitas outras possibilidades; indagarem sobre o que é arroz com pequi, por exemplo. Ou o que é “flanelinha”. Que se cuidem os espiões. Há mais coisas únicas na cultura brasileira do que imagina a vã xenofobia...

postado em 08/06/2025 06:00
x